Além das duas principais guerras em curso, a na Ucrânia e a no Oriente Médio, durante a semana passada o noticiário e os comentários na mídia internacional ocuparam-se significativamente com a reunião de cúpula dos Brics em Kazan, na Rússia, sob a presidência do governo de Moscou.
Flavio Aguiar, analista político
Para além das declarações de praxe contidas no documento conjunto final, falando em paz, manifestando preocupações humanitárias sobre Gaza e a Cisjordânia, condenando a expansão regional do conflito no Oriente Médio por parte de Israel, sugerindo a construção de uma nova ordem econômica mundial, a reunião deixou como saldo algumas evidências muito significativas.
A primeira é que a Rússia não está tão isolada quanto os Estados Unidos e seus aliados gostariam que estivesse. Aliás, ela pode estar isolada em relação aos países do “Ocidente ampliado”, mas fora deste círculo as sanções contra ela não encontram apoio.
A segunda é que cresceu bastante o interesse por parte de outros países em entrar ou se manter próximos ao grupo. Além dos quatro países fundadores do grupo, Brasil, Rússia, Índia e China, e da África do Sul que nele foi admitida em 2010, os Brics agora incluem como membros plenos ou convidados nesta qualidade mais 5 países: Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e o Irã.
E há dezenas de países interessados em ingressar ou se associar ao grupo, com destaque para a Turquia, que é membro da OTAN, organização que apoia a Ucrânia contra a Rússia, e da Sérvia, que também está se candidatando a entrar para a União Europeia, que tem a mesma posição da OTAN naquela guerra.
A cúpula deste ano convidou mais 13 países a integrar o grupo na condição de Estados Parceiros, isto é, sem direito a veto nem voto, entre eles Cuba e Bolívia, Nigéria e Uganda, Tailândia e Vietnã, além da Turquia.
Força brasileira
Ficou também evidente a força da posição brasileira no grupo. Rússia e China manifestaram desejo de incluir a Venezuela no convite. O Brasil vetou e os demais países aceitaram este veto sem reclamação. A posição do governo brasileiro é controversa mesmo entre seus apoiadores.
O fato é que Brasília e Caracas já vinham trocando farpas diplomáticas há algum tempo. O Brasil ainda não reconheceu a reeleição de Nicolás Maduro na presidência, alegando que as atas eleitorais não vieram a público. E o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, acusou o presidente Lula de “ser um agente da CIA”, embora o Ministério de Relações Exteriores venezuelano tenha desmentido a acusação.
O interesse mundial pelo projeto dos Brics cresceu muito desde que os Estados Unidos e seus aliados próximos, como a União Europeia, começaram a utilizar o sistema internacional de pagamentos e de reservas financeiras em dólares norte-americanos para punir quem considerem adversários ou inimigos através de sanções econômicas, como no caso da Rússia.
Esta teve reservas internacionais congeladas e reaplicadas no mercado financeiro pelos agentes que as detêm, para seus dividendos servirem como garantia a empréstimos à sua inimiga, a Ucrânia. A insegurança gerada pela guerra na Ucrânia e pelo conflito no Oriente Médio também contribuiu para acrescer o interesse pelos projetos dos Brics.
Um dos projetos centrais dos Brics é a criação de um sistema paralelo, independente do dólar, para as transações internacionais dos países membros e outros. Isto é um claro desafio à hegemonia financeira mundial dos Estados Unidos e de seus aliados próximos, mantida através da hegemonia do dólar como meio de pagamento desde a conferência de Bretton Woods, em 1944, que também criou o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Ao mesmo tempo, é um desafio para o próprio grupo dos Brics, pois a criação de um sistema paralelo demanda uma engenharia financeira de grande monta e de longo prazo.
Embora a hegemonia do dólar submeta o sistema financeiro aos Estados Unidos, que emite a moeda, e seus aliados próximos do Ocidente, ela garante uma certa estabilidade nas transações internacionais que, de outro modo, estariam sujeitas às inúmeras variações cambiais das outras moedas nacionais.
Meio de pagamento alternativo
O sucesso deste projeto dos Brics depende, portanto, da construção de um meio de pagamento alternativo, mesmo que seja inteiramente virtual, reconhecido por todos os interessados. Não teria sentido substituir a hegemonia do dólar pela de uma outra moeda nacional, como o renmimbi chinês, muitas vezes chamado pela nome de sua unidade, yuan, de pronúncia mais fácil.
A criação, emissão e administração desta moeda ou meio de pagamento virtual, que não substituiria as moedas nacionais, mas correria paralelamente a elas, como faz o dólar norte-americano, caberia ao Banco dos Brics, hoje presidido pela ex-presidenta Dilma Rousseff ou a um outro organismo especialmente criado para este fim.
Dada a heterogeneidade dos países membros e/ou na mira dos Brics, esta tarefa não será de fácil execução. Esta heterogeneidade é o ponto forte do projeto Brics, apontando para um mundo de fato multipolar. Mas é também um ponto frágil, exigindo, mais do que uma engenharia financeira, uma arquitetura política de grande sofisticação. A ver.