Quando líderes europeus começavam a esboçar críticas à matança em Gaza, o ataque israelense ao Irã os devolveu à chantagem de Netanyahu — à qual continuam a se submeter, não sem cumplicidade.
Thomás Zicman de Barros, analista político*
Já faz dez dias que Israel iniciou sua ofensiva militar no Irã. No sábado (21), Donald Trump anunciou que os Estados Unidos haviam se unido aos esforços israelenses e bombardeado alvos ligados ao programa nuclear iraniano.
Onde, porém, fica a Europa nessa situação? O novo chanceler alemão, Friedrich Merz, declarou que Israel está “fazendo o trabalho sujo” dos países ocidentais ao bombardear o Irã — uma frase que, em sua franqueza, escancarou uma cumplicidade calculada. Ao mesmo tempo, o presidente francês Emmanuel Macron responsabilizou Teerã pela escalada, mesmo diante de ataques israelenses que violaram de forma inequívoca o direito internacional e sabotaram negociações diplomáticas já em curso.
Mesmo sem entrar diretamente no conflito, Reino Unido, França e Alemanha, cada um à sua maneira, reafirmaram o alinhamento com Israel num momento em que, após quase dois anos de genocídio em Gaza, começavam a emergir críticas à brutalidade da campanha militar e ao governo de extrema direita que conduz o país. O ataque ao Irã interrompeu esse movimento — e fez recuar até os mais tímidos sinais de desconforto. Mesmo os esforços subsequentes para um retorno à diplomacia, como a reunião infrutífera entre europeus e iranianos em Genebra na sexta-feira (20), mostraram-se insuficientes para conter a escalada ou mudar o tom público das potências europeias. Ao contrário, mesmo após a entrada dos americanos na ofensiva contra o Irã, a primeira reação de Kaja Kallas, chefe da diplomacia europeia, foi de condenar Teerã.
Essa postura escancara a seletividade na aplicação do direito internacional — para não dizer seu caráter farsesco. O que é intolerável em alguns casos é relativizado em outros. O que é chamado de crime, noutros contextos, vira legítima defesa.
Apoio europeu a Israel responde a razões históricas e estratégicas
O apoio europeu a Israel não se dá apenas por inércia diplomática: responde a razões históricas e estratégicas. A Alemanha invoca um “imperativo moral” de apoio incondicional a Israel desde o pós-guerra — mas esse imperativo, longe de promover responsabilidade ética, tem frequentemente servido para silenciar críticas legítimas, com censura e perseguição a manifestações contrárias à ofensiva israelense.
França e Reino Unido, embora menos marcados por esse passado, seguem tentando preservar sua influência num cenário de instabilidade regional crescente. A contenção do regime iraniano — percebido como agente central de desestabilização no Oriente Médio — serve como justificativa conveniente para manter o apoio a Israel, mesmo diante de um ataque preventivo sem base legal que, este sim, elevou o risco de uma escalada regional. Ao se repetir apesar de transgressões reiteradas, esse apoio fragiliza a credibilidade europeia e expõe o uso seletivo das normas que ela mesma reivindica como universais.
Para entender essa lógica de cumplicidade, é preciso enxergar os múltiplos reféns que o governo Netanyahu produz — por diferentes meios e em diferentes planos. Sim, há os reféns reais ainda mantidos pelo Hamas, cuja libertação Netanyahu encena buscar. Mas há também outros tipos de reféns, dentro e fora de Israel.
Identidade judaica refém de Netanyahu
O primeiro deles é a própria identidade judaica. Há décadas, Netanyahu tenta fundir seus governos ao Estado, e o Estado à identidade judaica — como se fossem uma só coisa. A crítica ao seu governo vira crítica a Israel; a crítica a Israel, antissionismo; o antissionismo, antissemitismo — quando não puro negacionismo do Holocausto.
Essa cadeia de equivalências é falsa, mas altamente eficaz. Ela silencia vozes dissidentes, inclusive judaicas. E consolida, tanto à esquerda quanto à direita, a ideia de uma judaicidade à imagem e semelhança da base social de Netanyahu: uma extrema direita ultraortodoxa, nacionalista, e parte significativa da população mizrahi — historicamente marginalizada pela elite asquenaze, e hoje marcada por ressentimentos e receptiva ao discurso de força.
Esse movimento interno se intensificou com os atentados de 7 de outubro de 2023. Antes deles, Netanyahu enfrentava um desgaste crescente — político, institucional e jurídico — e o país vivia uma das maiores ondas de protesto de sua história recente, contra os ataques do governo à independência do Judiciário e às liberdades democráticas. O primeiro-ministro, à época, já acumulava acusações de corrupção e se via confrontado com a possibilidade concreta de prisão. Pela primeira vez em décadas, esboçava-se uma articulação entre setores progressistas judeus e partidos árabes — ainda incipiente, mas potencialmente capaz de desafiar o projeto autoritário de Netanyahu.
Os ataques promovidos pelo Hamas deram a Netanyahu uma tábua de salvação: ele restabeleceu sua autoridade e criou as condições para lançar a devastadora campanha militar em Gaza. Mais de 55 mil pessoas morreram desde então — a imensa maioria civis, mulheres e crianças, vítimas de uma punição coletiva, uma limpeza étnica de um povo já submetido a um sistema de segregação.
E morreu — ou quase morreu, pois a resistência há de persistir — a ideia de uma judaicidade de esquerda, ou quiçá de uma outra Israel, que alguns defendiam como pós-sionista. Não por acaso, é impossível ignorar que o próprio Netanyahu, ao longo dos anos, contribuíra deliberadamente para fortalecer o Hamas — uma escolha que consolida a identidade dos dois lados em chaves de extrema direita.
Conivência de governos hostis ao regime iraniano
O ataque ao Irã segue o mesmo propósito: numa guerra permanente, Netanyahu se mantém no poder, evita a prisão e reforça sua hegemonia sobre o que pode ou não ser dito em nome do povo judeu.
Mas Netanyahu não mantém reféns apenas dentro de casa. O ataque ao Irã foi uma manobra deliberada para disciplinar os governos ocidentais, dissolver críticas crescentes à ofensiva em Gaza e reposicionar Israel como peça-chave na região. A frase do chanceler alemão sobre o “trabalho sujo” não apenas revela o cinismo da lógica em curso: confirma que Netanyahu não age sozinho — age porque pode contar com a conivência de governos que, hostis ao regime iraniano, preferem ignorar os crimes israelenses a arriscar sua posição estratégica.
Ao fim, a tragédia não está apenas em Gaza, nem só no Irã: ela reside também no fato de que um governante de extrema direita como Netanyahu — investigado por corrupção, responsável por crimes de guerra e por um genocídio em curso — segue sendo tratado como parceiro legítimo por líderes cuja retórica ainda se apoia nos direitos humanos e no direito internacional. Não se trata de cegueira, nem de erro de cálculo: trata-se de uma escolha política deliberada, feita em nome da conveniência estratégica.
Romper com essa chantagem é urgente. Defender a paz no Oriente Médio exige, antes de tudo, coragem para dizer que a cumplicidade com Netanyahu não é neutralidade — é participação.
* Este artigo reflete exclusivamente a opinião do autor e não representa, necessariamente, a posição editorial da RFI.